“E então meu pai olhava para a frente com os olhos brilhantes”, prosseguiu Marcelle, “marchando como um exército. Toda vez que seus olhos brilhavam daquele jeito minha mãe tremia – porque significava alguma luta incansável e terrível contra a polícia, ou uma greve sangrenta, e ela temia por ele.” John Reed em A Filha da Revolução
A história que estou a contar poderá causar estranheza em qualquer ser humano do século XXI. Ainda mais quando tirar do meu baú memórias sobre o sangue que corre em minhas veias, um sangue diferente, não é azul, menos ainda melhor do que o sangue de qualquer pessoa disposta a ouvir. O sangue corrente nessas veias foi originado no século XIX, provavelmente encontrará o meu sangue correndo em veias de outro tempo histórico, mas o registro mais recente, ao menos documentado no papel e mantido por meio da oralidade é, estritamente, ligado ao século XIX.
Sou um tataraneto da revolução, das idéias rebeldes, que contaminaram os sangues de homens e mulheres das sarjetas das cidades européias, cuja cor vermelha remetia ao socialismo e a cor negra ao anarquismo. Daqueles deixados de lado da história, já que nos grandes eventos não ganharam destaque entre as estrelas do socialismo e do anarquismo, mas se fizeram completamente embriagados nas greves, nos confrontos de rua com a polícia, onde Marselhesa era uma ofensa aos socialistas das ruas, era a canção dos traidores. E quando topavam com um maldito qualquer da Igreja, faziam questão de gritar para todo mundo ouvir “À bas lês calottes! À bas lês calottes!”
Estou aqui, velho, sozinho, com certa amargura na voz, ao menos o garçom do Bar Palmeirão disse sentir quando pedi um café puro e uma empadinha de palmito. É preciso deixar de lado as tais memórias, falo pra mim, ninguém levará a sério as amarguras de um velho de sangue quente, explosivo e socialista. Sangue bem quente mesmo, até o meu próprio filho afastei de mim, como o pai do meu tataravô fez com sua filha Marcelle. Passaram seis anos desde a briga com meu filho por conta do meu neto ir para uma escola particular. Tentei demonstrar que as diferenças dos lugares e das coisas acontecem nos espaços públicos, no privado só era a homogeneidade. Nada feito, somente o afastamento.
Merda. Os meus pensamentos privados são cortados por ruídos externos, não entendo o que a voz do garçom está dizendo, tento prestar atenção, somente compreendo “Vê, lá vem à rapaziada do passe livre”. Imediatamente o meu sangue volta a ferver, como se a minha companheira tivesse me despejado no forninho. Corro até a porta do Palmeirão, vejo nada mais de cem estudantes das escolas públicas, particulares e alguns universitários, entre garotos e garotas, poucos estão além dos vinte e poucos anos, mais a bandeira está no ar e gritos pelo passe livre também. O meu rápido pensamento produz uma voz inaudível, ao menos jurei ser, mas o garçom ouviu e respondeu “Hoje é dia nacional de luta pelo passe livre”.
Carinhosamente observo a meninada, bato palmas de apoio e uns sorrisos são destinados a mim e ao garçom, outro autor de uma salva de palmas. Naquele momento, uma criança me chama atenção, é meu neto, dezesseis anos e mal o tenho visto, motivado pelo desentendimento com meu filho. Sabe, não foi o nariz ou pelo detalhe do queixo as características físicas de identificação, mas foram os olhos brilhantes, como se fosse uma fresta de esperança para a minha velhice.
Pensei em descer os dois degraus, chegar mais perto da garotada, desisto, como se uma força interna não permitisse chegar até na rua. O meu corpo não se permite ser levado por todos ali envolvidos, os meus ouvidos ao serem guiados por sonoridades de uma cantoria desafinada e cheia de vontade fazem os pensamentos irem ao meio deles, até que, repentinamente, tenho a perda da única face conhecida por mim, meu neto e seus olhos brilhantes já não estão mais entre o pequeno furacão. Penso, “Cadê o meu neto”? Dessa vez, o meu pensamento não é escutado.
Mais uma voz responde. Vô? , uma voz jovial e rouca, como de um fumante invertebrado desde o nascimento. O som da voz está forte, como se estivesse a poucos centímetros dos meus ouvidos. Viro o rosto e perto de mim, vejo o meu neto, digo “Olá, meu neto. Não só neto, agora, também, um companheiro.”, ao querer esconder a minha alegria de encontrá-lo naquelas circunstâncias, um querer sem êxito, pois o abraço do garoto, meu neto, meu companheiro quebrou qualquer estimulo para esconder minha alegria. “Vô, tenho de ir as ruas. Mas anote aí, domingo, as 11:30, vou até a sua casa, quero almoçar com o senhor.” . Sem pensar duas vezes, confirmei o almoço e disse para voltar às ruas, o menino se foi.
Voltei o meu corpo ao balcão do bar, paguei o consumido. Passei a caminhar querendo imaginar o destino certeiro, nada feito. Enquanto isso, ao marchar como um exército revolucionário, ninguém disse que os meus olhos brilhavam, pela primeira vez, eu sentia os meus olhos brilharem.
Sou um tataraneto da revolução, das idéias rebeldes, que contaminaram os sangues de homens e mulheres das sarjetas das cidades européias, cuja cor vermelha remetia ao socialismo e a cor negra ao anarquismo. Daqueles deixados de lado da história, já que nos grandes eventos não ganharam destaque entre as estrelas do socialismo e do anarquismo, mas se fizeram completamente embriagados nas greves, nos confrontos de rua com a polícia, onde Marselhesa era uma ofensa aos socialistas das ruas, era a canção dos traidores. E quando topavam com um maldito qualquer da Igreja, faziam questão de gritar para todo mundo ouvir “À bas lês calottes! À bas lês calottes!”
Estou aqui, velho, sozinho, com certa amargura na voz, ao menos o garçom do Bar Palmeirão disse sentir quando pedi um café puro e uma empadinha de palmito. É preciso deixar de lado as tais memórias, falo pra mim, ninguém levará a sério as amarguras de um velho de sangue quente, explosivo e socialista. Sangue bem quente mesmo, até o meu próprio filho afastei de mim, como o pai do meu tataravô fez com sua filha Marcelle. Passaram seis anos desde a briga com meu filho por conta do meu neto ir para uma escola particular. Tentei demonstrar que as diferenças dos lugares e das coisas acontecem nos espaços públicos, no privado só era a homogeneidade. Nada feito, somente o afastamento.
Merda. Os meus pensamentos privados são cortados por ruídos externos, não entendo o que a voz do garçom está dizendo, tento prestar atenção, somente compreendo “Vê, lá vem à rapaziada do passe livre”. Imediatamente o meu sangue volta a ferver, como se a minha companheira tivesse me despejado no forninho. Corro até a porta do Palmeirão, vejo nada mais de cem estudantes das escolas públicas, particulares e alguns universitários, entre garotos e garotas, poucos estão além dos vinte e poucos anos, mais a bandeira está no ar e gritos pelo passe livre também. O meu rápido pensamento produz uma voz inaudível, ao menos jurei ser, mas o garçom ouviu e respondeu “Hoje é dia nacional de luta pelo passe livre”.
Carinhosamente observo a meninada, bato palmas de apoio e uns sorrisos são destinados a mim e ao garçom, outro autor de uma salva de palmas. Naquele momento, uma criança me chama atenção, é meu neto, dezesseis anos e mal o tenho visto, motivado pelo desentendimento com meu filho. Sabe, não foi o nariz ou pelo detalhe do queixo as características físicas de identificação, mas foram os olhos brilhantes, como se fosse uma fresta de esperança para a minha velhice.
Pensei em descer os dois degraus, chegar mais perto da garotada, desisto, como se uma força interna não permitisse chegar até na rua. O meu corpo não se permite ser levado por todos ali envolvidos, os meus ouvidos ao serem guiados por sonoridades de uma cantoria desafinada e cheia de vontade fazem os pensamentos irem ao meio deles, até que, repentinamente, tenho a perda da única face conhecida por mim, meu neto e seus olhos brilhantes já não estão mais entre o pequeno furacão. Penso, “Cadê o meu neto”? Dessa vez, o meu pensamento não é escutado.
Mais uma voz responde. Vô? , uma voz jovial e rouca, como de um fumante invertebrado desde o nascimento. O som da voz está forte, como se estivesse a poucos centímetros dos meus ouvidos. Viro o rosto e perto de mim, vejo o meu neto, digo “Olá, meu neto. Não só neto, agora, também, um companheiro.”, ao querer esconder a minha alegria de encontrá-lo naquelas circunstâncias, um querer sem êxito, pois o abraço do garoto, meu neto, meu companheiro quebrou qualquer estimulo para esconder minha alegria. “Vô, tenho de ir as ruas. Mas anote aí, domingo, as 11:30, vou até a sua casa, quero almoçar com o senhor.” . Sem pensar duas vezes, confirmei o almoço e disse para voltar às ruas, o menino se foi.
Voltei o meu corpo ao balcão do bar, paguei o consumido. Passei a caminhar querendo imaginar o destino certeiro, nada feito. Enquanto isso, ao marchar como um exército revolucionário, ninguém disse que os meus olhos brilhavam, pela primeira vez, eu sentia os meus olhos brilharem.
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