domingo, 4 de julho de 2010

Capítulo 1 (ou: uma homenagem a John Reed)

E então meu pai olhava para a frente com os olhos brilhantes”, prosseguiu Marcelle, “marchando como um exército. Toda vez que seus olhos brilhavam daquele jeito minha mãe tremia – porque significava alguma luta incansável e terrível contra a polícia, ou uma greve sangrenta, e ela temia por ele.” John Reed em A Filha da Revolução



A história que estou a contar poderá causar estranheza em qualquer ser humano do século XXI. Ainda mais quando tirar do meu baú memórias sobre o sangue que corre em minhas veias, um sangue diferente, não é azul, menos ainda melhor do que o sangue de qualquer pessoa disposta a ouvir. O sangue corrente nessas veias foi originado no século XIX, provavelmente encontrará o meu sangue correndo em veias de outro tempo histórico, mas o registro mais recente, ao menos documentado no papel e mantido por meio da oralidade é, estritamente, ligado ao século XIX.

Sou um tataraneto da revolução, das idéias rebeldes, que contaminaram os sangues de homens e mulheres das sarjetas das cidades européias, cuja cor vermelha remetia ao socialismo e a cor negra ao anarquismo. Daqueles deixados de lado da história, já que nos grandes eventos não ganharam destaque entre as estrelas do socialismo e do anarquismo, mas se fizeram completamente embriagados nas greves, nos confrontos de rua com a polícia, onde Marselhesa era uma ofensa aos socialistas das ruas, era a canção dos traidores. E quando topavam com um maldito qualquer da Igreja, faziam questão de gritar para todo mundo ouvir “À bas lês calottes! À bas lês calottes!”

Estou aqui, velho, sozinho, com certa amargura na voz, ao menos o garçom do Bar Palmeirão disse sentir quando pedi um café puro e uma empadinha de palmito. É preciso deixar de lado as tais memórias, falo pra mim, ninguém levará a sério as amarguras de um velho de sangue quente, explosivo e socialista. Sangue bem quente mesmo, até o meu próprio filho afastei de mim, como o pai do meu tataravô fez com sua filha Marcelle. Passaram seis anos desde a briga com meu filho por conta do meu neto ir para uma escola particular. Tentei demonstrar que as diferenças dos lugares e das coisas acontecem nos espaços públicos, no privado só era a homogeneidade. Nada feito, somente o afastamento.

Merda. Os meus pensamentos privados são cortados por ruídos externos, não entendo o que a voz do garçom está dizendo, tento prestar atenção, somente compreendo “Vê, lá vem à rapaziada do passe livre”. Imediatamente o meu sangue volta a ferver, como se a minha companheira tivesse me despejado no forninho. Corro até a porta do Palmeirão, vejo nada mais de cem estudantes das escolas públicas, particulares e alguns universitários, entre garotos e garotas, poucos estão além dos vinte e poucos anos, mais a bandeira está no ar e gritos pelo passe livre também. O meu rápido pensamento produz uma voz inaudível, ao menos jurei ser, mas o garçom ouviu e respondeu “Hoje é dia nacional de luta pelo passe livre”.

Carinhosamente observo a meninada, bato palmas de apoio e uns sorrisos são destinados a mim e ao garçom, outro autor de uma salva de palmas. Naquele momento, uma criança me chama atenção, é meu neto, dezesseis anos e mal o tenho visto, motivado pelo desentendimento com meu filho. Sabe, não foi o nariz ou pelo detalhe do queixo as características físicas de identificação, mas foram os olhos brilhantes, como se fosse uma fresta de esperança para a minha velhice.

Pensei em descer os dois degraus, chegar mais perto da garotada, desisto, como se uma força interna não permitisse chegar até na rua. O meu corpo não se permite ser levado por todos ali envolvidos, os meus ouvidos ao serem guiados por sonoridades de uma cantoria desafinada e cheia de vontade fazem os pensamentos irem ao meio deles, até que, repentinamente, tenho a perda da única face conhecida por mim, meu neto e seus olhos brilhantes já não estão mais entre o pequeno furacão. Penso, “Cadê o meu neto”? Dessa vez, o meu pensamento não é escutado.

Mais uma voz responde. Vô? , uma voz jovial e rouca, como de um fumante invertebrado desde o nascimento. O som da voz está forte, como se estivesse a poucos centímetros dos meus ouvidos. Viro o rosto e perto de mim, vejo o meu neto, digo “Olá, meu neto. Não só neto, agora, também, um companheiro.”, ao querer esconder a minha alegria de encontrá-lo naquelas circunstâncias, um querer sem êxito, pois o abraço do garoto, meu neto, meu companheiro quebrou qualquer estimulo para esconder minha alegria. “Vô, tenho de ir as ruas. Mas anote aí, domingo, as 11:30, vou até a sua casa, quero almoçar com o senhor.” . Sem pensar duas vezes, confirmei o almoço e disse para voltar às ruas, o menino se foi.

Voltei o meu corpo ao balcão do bar, paguei o consumido. Passei a caminhar querendo imaginar o destino certeiro, nada feito. Enquanto isso, ao marchar como um exército revolucionário, ninguém disse que os meus olhos brilhavam, pela primeira vez, eu sentia os meus olhos brilharem.

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